FÁBRICA DE SABÕES





Marvila era, desde o século XIX, uma área da cidade vocacionada para a indústria. A sua posição periférica, ladeando a frente ribeirinha com acesso aos portos, acompanhando a extensão da ferrovia (a partir de 1856), era ideal para a instalação de indústrias com facilitado escoamento das mercadorias. Os terrenos disponíveis tinham também a escala necessária para a instalação de grandes complexos fabris. E foi assim que as vastas quintas de recreio da nobreza e do clero trocaram de mãos, passando para a burguesia industrial. Esta sobreposição territorial, económica e simbólica, transformou radicalmente, não apenas a paisagem, como o tecido social da zona oriental de Lisboa. Em torno das fábricas, aglomeraram-se e multiplicaram-se os bairros precários da mão-de-obra operária, ocupando o espaço disponível, dos pátios das quintas aos terrenos silvícolas. Chegados às décadas de 40 e 50 do século XX, com a política proteccionista da produção nacional defendida por Salazar (ainda que ele fosse mais adepto de um Portugal conservador, rural e agrário), a Marvila industrial estava no seu auge. Foi neste contexto que uma indústria como a Sociedade Nacional de Sabões (SNS) se podia expandir, a par de outras tantas nas imediações como: a Sociedade Nacional dos Fósforos, a Fábrica de Material de Guerra de Braço de Prata, a Tabaqueira ou a Companhia Nacional de Moagem.

Sobre as coordenadas geográficas do que foi a SNS, debruça-se THE PONDS. O campo cinematográfico e artístico de hoje é um baldio fértil (e com usos muito heterogéneos pela comunidade) habitado por inúmeras espécies autóctones e ditas invasoras, que subsistem indomitamente nas ruínas desta indústria. Neste campo, identificam-se vestígios muito concretos do seu passado industrial, nomeadamente, uma charca de água e uma charca de petróleo, que dão título ao projecto.


“Levantamento da Planta de Lisboa” levado a cabo entre 1904 e 1911, por Júlio António Vieira da Silva Pinto e Alberto de Sá Correia. [Arquivo Municipal de Lisboa]


* Detalhe do mapa anterior com pontos de água assinalados



*1955. Planta Topográfica, Cidade de Lisboa - Zona Estrada





Quando Mário Novais recebeu no seu estúdio a encomenda do industrial Rocha dos Santos, corria o ano de 1945. O fotógrafo foi então conhecer as novas instalações da Sociedade Nacional de Sabões, localizada nos terrenos da antiga Quinta de Marvila, e que agora se expandia para a Quinta do Marquês de Marialva (na parcela designada por Quinta do Brito), contíguos a oeste à Escola Industrial Afonso Domingues (1884-2010), a este à Azinhaga dos Alfinetes, a sul à Rua de Marvila e a norte à linha de comboio, cobrindo uma área de cerca de 90 mil metros quadrados.








O Estúdio Mário Novais (1933-1985) foi responsável por documentar as muitas obras públicas e privadas, dos anos 30 a 60, e o seu arquivo está guardado na Fundação Calouste Gulbenkian - Biblioteca de Arte, sendo testemunha de uma época que viu nascer as bases da economia corporativista. Novais foi fazer a sua reportagem, sabendo que a SNS era já uma fábrica histórica e ocupava um lugar relevante na indústria nacional. Tinha sido fundada em 1919, por fusão de várias empresas, uma delas a Saboaria Nacional do Beato, que operava no mesmo local.

Rocha dos Santos, um dos industriais fundadores da SNS, pedira a Novais uma cobertura extensa do interior e exterior da fábrica. Em pleno pós-guerra, demolira parte do antigo solar (edificado pelo 1º Marquês de Marialva, no século XVII), e construira novas estruturas, que tornavam o complexo fabril praticamente auto-suficiente: o refeitório, parque de recreio do pessoal e biblioteca, zona de serviços sociais e técnicos, laboratório de química, caldeira de vapor e central eléctrica, armazéns, linhas de montagem e embalagem, silos de oleaginosas, fábrica de adubos e de óleos, oficina de tanoaria, apeadeiro. Novais fotografou, em linhas ortogonais, pesando a estética da monumentalidade, o funcionamento em circuito fechado, e encenou a organização metódica, bélica, do trabalho e dos trabalhadores.








 
O “sabão azul e branco”, vendido em barra, fora um dos expoentes comerciais da SNS, mas Rocha dos Santos tinha um novo produto para lançar no mercado, que Mario Novais fotografa no seu estúdio para fazer a campanha de propaganda, e que deixaria a lavadeira Beatriz Costa incapaz de continuar a cantar os versos:
“Ai rio, não te queixes / Ai, o sabão não mata
Ai, até lava os peixes / Ai, põe-nos cor de prata
Roupa no monte a corar / Vê lá bem tão branca e leve”

O Sonasol, lançado em 1951.
A fórmula do sabão activado – e sobretudo do detergente sintético – vinha sendo experimentada desde o início do século XX por diversos químicos, mas é apenas na década de 30 que surge, na Alemanha, por impulso e necessidade, dada a dificuldade de acesso a gorduras durante a 2ª Guerra Mundial, uma das que seria verdadeiramente rentável e comercializável. Já na década de 50, os detergentes sintéticos (e derivados do petróleo) entram em massa no mercado e em Portugal, a SNS inicia a sua produção, vendendo o Sonasol, que seria o primeiro de muitos detergentes sintéticos que operam uma mudança de paradigma no que respeita, nomeadamente, ao trabalho doméstico feminino. Para além dos detergentes, a SNS produzia também óleos alimentares, margarinas, fertilizantes e adubos químicos.






Hoje, o uso continuado de fosfatos e surfactantes nos detergentes, é contestado, pela sobrecarga de nutrientes que causa a eutrofização das águas e contaminação dos solos. São por isso, consideradas alternativas artesanais igualmente eficientes e menos agressivas para o ambiente, como: vinagre, carbonato de sódio, sumo de limão, sal, borras de café, extractos de frutas, entre outros.

Dez anos mais tarde, em 1961, no ano em que a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP) se reuniu pela primeira vez em Casablanca (Marrocos), para “estabelecer os meios efectivos para iniciar a luta contra o colonialismo português”, a SNS assinava contrato com a multinacional Colgate-Palmolive para fabrico dos seus produtos nas instalações de Marvila. Chegados a 1974, a Sociedade Nacional de Sabões era um dos maiores grupos privados, rivalizando com a CUF, concentrando diversas empresas e diversificando investimentos, nomeadamente, em empresas publicitárias e de comunicação social (como o semanário Expresso). Em 1989, data em que é comprada pela multinacional Henkel, contribuía para 0,2% do PIB português. Esta venda assinala, no entanto, a sua decadência, consumando-se o fecho da fábrica de Marvila pouco tempo depois.

Escreveu João Santana da Silva sobre a SNS que “até aos anos noventa do século XX, período em que fechou portas, foi um dos maiores empregadores nos bairros do Beato e de Marvila.” Esta capacidade de absorção de mão-de-obra, inscrevendo na sua história secular diversas gerações, é ainda atestada pelas dívidas que deixou aos trabalhadores, ao declarar insolvência em 1996. Noticiava o PUBLICO, em 25-01-1999 que “os créditos no valor de quase dez milhões de contos detidos sobre a Sociedade Nacional de Sabões (SNS) estão agora a um passo de ser transformados em capital, após a comercialização dos seus terrenos, na zona oriental de Lisboa, uma operação com início previsto para este mês. (...) O PÚBLICO apurou junto do presidente da comissão liquidatária que, com a venda do terreno em Marvila, actualmente na posse da SNS, ficam criadas as condições para a conclusão do processo de falência, que envolve dívidas de 9,782 milhões de contos a 497 trabalhadores e reformados.”












O processo de falência é prolongado, o retrato de uma morte lenta. Se em 1999, parecia estar perto da conclusão, como refere a notícia, não podemos menosprezar a capacidade de especulação imobiliária sobre os terrenos da SNS e a sua posição privilegiada, que rapidamente se transforma em autofagia. Como indicavam os jornais em Dezembro de 2006, denunciando a polémica: “A sociedade Lismarvila vendeu por 56,5 milhões de euros, em Março deste ano, 60 por cento dos terrenos da antiga Sociedade Nacional de Sabões (SNS), cuja totalidade foi comprada, em 2001 e 2004, por 26,2 milhões de euros. (...) A enorme valorização dos terrenos conseguida em cerca de cinco anos pela Lismarvila foi concretizada num momento em que a Câmara de Lisboa ainda estava a apreciar o projecto de loteamento que incide sobre um total de 106.420 m2, mas quando já tinha sido aprovada a alteração simplificada ao Plano Director Municipal, datada de Março de 2004, que, no entender da maioria camarária, permitiu a sua aprovação inicial.” Ora, esta alteração ao PDM permitia justamente a urbanização de terrenos industriais em Marvila. Fora a Lismarvila quem, em 2003 e 2004, procedera à demolição das estruturas fabris que permitiriam lotear e re-urbanizar o terreno. No entanto, em 2006, após a venda polémica, a CML acaba por revogar a aprovação do projecto de construção, e apresentar um parecer desfavorável da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional, relacionado com o traçado dos acessos à futura ponte Chelas-Barreiro e com o traçado do TGV.




Se a morte da fábrica é lenta, a vida vegetal e animal tem pressa em ocupar o espaço livre, servindo-se de cooperações inusitadas entre floras autóctones e invasoras, e usando improvisadamente os seus recursos arruinados e contaminados.




Passados 16 anos, se procurarmos a criação antropogénica neste espaço, encontramos apenas de pé o mirante do século XVI que fora construído pelo 1º Marquês de Marialva (classificado pelo Inventário do Património Municipal, desde 2006). E os muros que ladeiam a estrada de Marvila. Uma habitante centenária que sobreviveu a todas as mutações urbanas, possivelmente tão antiga quanto o mirante, mantém as suas raízes bem enterradas no solo: uma figueira (FICUS MACROPHYLA).






*2022. LETTER FROM THE POND, © Lana Almeida e Manuel Bívar