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Esta série de fotografias foi realizada no verão de 2021, durante a recolha de plantas para o herbário.
As imagens analógicas foram posteriormente limpas, recorrendo a um químico branqueador de metais.



A Adília Lopes escreveu um Louvor do lixo que começa assim: “é preciso desentropiar/a casa/todos os dias/para adiar o kaos/a poetisa é a mulher-a-dias/arruma o poema/como arruma a casa/que o terremoto ameaça”*. Podíamos começar por aqui, pela “entropia”, ou desarrumação das coisas, como o seu estado natural e continuado. Quando nos esforçamos muito por manter a casa limpa, ela consegue sempre retornar ao caos, e deixar-nos com a sensação de perda de controlo novamente. Se não soubéssemos louvar o lixo, perderíamos a oportunidade de lhe reconhecer a necessidade, o sentido que nos devolve quando nos ocupamos da sua limpeza. Talvez por isso, como diz Adília: “é preciso agradecer o pó/o pó que torna o livro/ilegível como o tigre”*.
As fotografias são feitas de pó, grãos de pó de prata, sensíveis à luz. A fotossensibilidade da película fotográfica é um fenómeno paradoxal: é preciso queimar para ver, tornar negativo o positivo. Estas imagens de pó devem muito a acasos luminosos. Como também, há muito de acaso no lixo, aliás, “(uma pomba pode visitar o lixo)”*. E há muitas fotografias que vão para o lixo. Deixam de servir. Mas no lixo, não se perdem. A fotografia é uma boa forma (uma forma narcísica) de nos iludirmos quanto à nossa capacidade de manter o controlo sobre as coisas. E também nos ilude quanto à nossa capacidade de recordar. Até porque as fotografias também são coisa, e enquanto coisa, são frágeis, embora alguns de nós façamos os possíveis por assegurar a sua conservação. A sua fragilidade é considerada um defeito. Mas é na sua deterioração material que sabemos que existe vida. Uma tira de negativos traça uma cronologia, tem tempo e espaço. A fotografia nunca é de hoje, é sempre de ontem. Deve ser por isso que lhe chamam “filme”. Mas também lhe podiam chamar “puzzle”. Se fosse assim tão simples, as imagens encaixariam umas nas outras na perfeição, resolviam-se ou ficavam por resolver. Mãe-Nossa, “a entropia de cada dia/nos dai hoje”.

*“Louvor do lixo” in Adília Lopes, “A mulher-a-dias”, &etc, 2002.